quinta-feira, 16 de abril de 2009


Conversa puxa Conversa (4)



















A fila do supermercado era longa.
Dava tempo de muita conversa.
O fio da meada era o preço do ovo de Páscoa: ela ia comprar na cidade,
segundo uma amiga, era mais barato.
Argumentei que não valia a pena,
a passagem do ônibus equivalia à diferença.
Contou-me que era cobradora de ônibus,
tinha carteira para andar "de graça".
Disse-lhe que deveria ser por isso que seu rosto me era familiar.
Cabelo sarará, olhos verdes, pele clara,
certamente cruzamento de judeu com negro.
Ponderou que talvez não fosse ela quem eu pensava,
pois há dois anos estava de licença.
Havia sido vítima de 6 assaltos e tomara a decisão de pedir demissão.
O gerente lhe sugeriu licença médica. Categórica, observou
que o conselho do gerente era melhor situação
para a empresa e para ela:
para a empresa, porque era sabido que cobradores de ônibus
costumam reaver, através da Justiça,
o dinheiro com que ressarcem a companhia quando ônibus são assaltados;
para ela, porque ainda devia o correspondente aos 2 últimos assaltos
e durante a licença não era permitido que lhe fizessem descontos no salário.
Melhor então que ficasse à custa do INSS.
Interrompi minha recém-conhecida nesta parte da conversa
e confessei minha surpresa por não saber
que os cobradores dos ônibus assaltados arcam com tal prejuízo.
Explicou-me que os donos das empresas fazem isso
para evitar combinações entre cobradores e assaltantes...
Nessa altura, atônita, ainda pude perguntar-lhe
se em alguma das vezes havia sido agredida.
Fez expressão de sofrimento e com um gesto de cabeça afirmou que sim.
Começou a falar baixinho, só para mim,
deixando curiosas nossas vizinhas de fila.
Foi-se chegando, cabeça quase encostada na minha,
cochichou que o pior acontecera fora do ônibus.
Costumava sair de casa às 3 horas da manhã, porque às 4
partia o primeiro ônibus da garagem.
Estava com a farda de cobradora
e mesmo assim fora estuprada por 3 homens.
Nas ocorrências dentro do ônibus, pelo menos, os assaltantes
levavam somente o dinheiro que depois lhe descontavam.
Nessa vida já se iam 4 anos.
Agora seus nervos estavam esgotados.
Foi licenciada e talvez lhe aposentassem.
Na última eleição para deputado o gerente lhe visitara em casa
e advertiu-lhe de que o INSS podia ter métodos capazes de reabilitá-la,
sobre isso não sabia ao certo. Mas o motivo da visita era lembrá-la
que o dono da empresa era candidato
e contava com o voto dos empregados.
Em tom de quem extrai confissão perguntei-lhe se havia votado nele.
Secou as lágrimas com o dorso da mão que segurava
um pacote de margarina.
Outra vez, fez expressão de sofrimento
e com um gesto de cabeça afirmou que sim.

Ilustração do artista plástico cearense Mário Sanders

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Conversa
puxa
Conversa (3)

A descoberta do fogo, as Grandes Navegações, todos os avanços da ciência já tiveram sua pertinência questionada: incertezas e sacrifícios fazem parte da narração das conquistas. Há um custo humano em todas as expedições que provocam superações e mudanças: erros e tragédias se intercalam com acertos e alcances.
Na literatura que trata das aventuras marítimas, o limite do comportamento humano está posto em questão.
São versos do sobrevivente de naufrágio Luís de Camões, no Canto IV, 97, em sua obra “Os Lusíadas”, de 1569, através do personagem Velho do Restelo:
Que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente ?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?

“História Trágico-Marítima”é um livro com narrativas portuguesas de náufragos sobreviventes de embarcações que pretendiam alcançar as Américas, a Ásia e a África, entre os anos 1500 e 1600.
As histórias foram compiladas no século XVIII, por Bernardo Gomes de Brito, e publicadas em Portugal, em dois tomos, em 1735 e 1736.
A “História Trágico-Marítima” foi editada no Brasil em 1963,
e reeditada, em 1968, por Lacerda Editores/Contraponto.
O livro “Moby Dick”, do autor inglês Herman Melville (1819-1891), clássico da literatura do século XIX, narra o enfrentamento, no mar, de um experiente navegador e uma baleia. Uma disputa quase filosófica, promovida pelo acaso, entre seres diferentes da natureza. A origem desse romance é o naufrágio, no Pacífico, do navio baleeiro Essex, que em 1820 afundou com cerca de 20 homens a bordo. Também o livro “No Coração do Mar”, de Nathaniel Philbrick, publicado no Brasil, em 2000, pela Editora Companhia das Letras, reconstrói o depoimento de um sobrevivente dessa tragédia, que conta os erros cometidos e a experiência da tripulação do barco, cujo naufrágio foi provocado pelo ataque de baleias. Natanael Philbrick é pesquisador em Nantucket (da Nantucket Historical Association), ilha da costa leste dos Estados Unidos de onde partiu o Essex, que durante muito tempo foi o maior centro baleeiro do mundo.

Também o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) escreveu “Mar Portuguêz”
sob inspiração do esforço humano para promover travessias:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão resaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quere passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abysmo deu,
Mas nelle é que espelhou o céu.

(Bojador é o nome de um cabo a noroeste do continente africano,
onde naufragavam muitas embarcações que tentavam alcançar a Ásia.)
foto de Fernando Pessoa


Conversa puxa Conversa (2)

A França, sociedade que se orgulha por ser distinguida como nação de vanguarda das idéias, tem promovido discussões em torno do trabalho de François Jullien, nascido em 1951, especialista sobre a China e a Grécia. No livro “Traité de l’Efficacité” (Tratado da Eficácia, traduzido para o português por Paulo Neves e publicado no Brasl pela Editora 34, em 1998, François Jullien argumenta que a eficácia no Ocidente se opõe em tudo à eficácia na China.

“A primeira procura atingir diretamente, através de uma ação voluntária, um objetivo fixado com antecedência. A segunda avalia a situação e depois a orienta de maneira a que o resultado se produza espontaneamente. A eficácia na China repousa sobre a transformação e a orientação. Fazendo evoluir a relação de força em seu favor, o estrategista chinês dirige as forças com as quais se depara. Ele se apoia sobre a propensão das coisas e se serve daquilo que lhe oferecem as circunstâncias. A guerra e a diplomacia ilustram perfeitamente o pensamento da eficácia na China. O estrategista orienta suas tropas e seus adversários para ganhar a batalha sem precisar combater, como o príncipe dirige seus súditos para que o poder lhe venha naturalmente”.

Em 1995, François Jullien já havia publicado um outro livro, traduzido para o português em 2001 sob o título “Fundar a Moral: diálogo de Mêncio com um filósofo das Luzes”, abordando preocupações de Mêncio, há 23 séculos, com o profissionalismo na administração pública.
Nascido por volta de 371 a.C., quase um século depois de Confúcio, Mêncio — latinização de Mengzi (Meng-tzu) — é considerado o segundo sábio do confucionismo.

Trechos de “Os Quatro Livros”, de Mêncio:

“A compaixão é o princípio da beneficência; a vergonha e o horror do mal são o princípio da justiça; a vontade de recusar para si e ceder ao outro é o princípio da urbanidade; a inclinação a aprovar o bem e a reprovar o mal é o princúipio da sabedoria. Todo homem tem naturalmente esses quatro princípios, como possui os quatro membros (...). Aquele que souber desenvolvê-los plenamente poderá governar o império” (...)



Conversa puxa Conversa (1)

Um violinista no telhado, filme do diretor norte-americano Normam Jewison, realizado em 1971, - baseado no livro "Tevye's Daughters and play Tevye der Milkhiker", de Sholem Aleichem, conta a história de Tevye, um leiteiro que vivia numa comunidade rural de judeus na Rússia, no começo do século XX. É bem provável que o diretor Normam Jewison tenha se inspirado também num quadro intitulado "O Morto", pintado em 1908 por Chagall, artista plástico russo e judeu. A pintura de Chagall contém muitas imagens da vida dos judeus que viviam em pequenas aldeias, chamadas shtetel, tal como o filme retrata. Chagall dizia que quando foi pintar esse quadro queria retratar a rua, olhada a partir de sua janela. Procurou algumas imagens que pudessem dar ao quadro um certo mistério e imaginou um morto estendido no meio da rua, cercado de velas acesas, e um violinista tocando em cima do telhado. O violinista, segundo ele, era uma lembrança que tinha de seu avô, que subia no telhado para tocar, anunciando que assim o fazia para tocar com paz. No filme, o leiteiro Tevye comenta que o violinista no telhado procura o equilíbrio, e o equilíbrio é a tradição. Na verdade, o violino, que também aparece em vários outros quadros de Chagall, é um instrumento musical utilizado tradicionalmente pelos judeus russos. Grandes intérpretes de violino - como Isaac Stern, que executa uma peça musical na trilha sonora do filme - são de origem judaica. Para um povo quase sempre em conflito, é compreensível a preferência pelo violino, instrumento fácil de ser transportado.


O tema do filme são os judeus da Europa Central, chamados de askhenazitas, que falavam o dialeto ídiche, de origem alemã, e durante o século XIX viviam em shtetelech (plural de shtetel, que significa aldeia), comunidades tipicamente judaicas. Apesar do isolamento político e cultural, mantinham relações econômicas com a população nacional e ligações oficiais com o governo. Quando pretenderam a nacionalidade e o tratamento como cidadãos, enfrentaram a resistência dos governos e das populações civis, porque tais reivindicações significavam direitos políticos e a ocupação de postos de trabalho. Principalmente na Rússia, foram criadas leis de exceção e progroms - massacres institucionalizados pela polícia, que provocavam a dizimação das aldeias. O governo czarista justificava o massacre com o argumento de que as reivindicaçoes dos judeus eram uma provocação aos camponeses miséráveis da Russia do começo do século XX.